segunda-feira, 31 de março de 2014

Uma noite n[o mecanismo narrativo d]a taverna




- Então vocês começam na taverna e...
- Que?! De novo?!


Começar uma aventura em um bar ou taverna é um clichê tão recorrente do mundo do RPG que já virou até piada. Muitos jogadores atribuem o uso deste recurso a uma suposta falta de criatividade do mestre, mas quem já narrou sabe como é difícil escapar deste clichê em específico.

E ele não está restrito ao RPG. Basta dar uma olhada no conjunto das grandes obras da literatura pop para ser atropelado pela gigantesca quantidade de eventos. O Pônei Saltitante, a Cantina de Mos Eisley, o Caldeirão Furado e o bar Horse and Groom são só alguns exemplos. Na maior parte dos casos, este lugar de beber é o espaço onde ocorre alguma importante transformação na trama, e geralmente no início. 

Por que? Será que todos os escritores são assolados pela mesma síndrome de falta de criatividade que atinge os mestres de RPG, e acabam copiando uns aos outros? 

Eu acho que não. 

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Obs: A explicação que se segue é baseada em uma determinada corrente de estudos de mitologia e antropologia, que defende que todas as narrativas modernas seguem padrões estabelecidos no inconsciente humano através de milhares de anos de cultura oral, durante a chamada Pré História. Sobre o assunto, leia primeiro este post aqui.

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Vamos começar entrando na nossa máquina do tempo e voltando à Pré História. Qualquer época entre o Paleolítico Superior e o Neolítico, pra não ter erro.

Sabendo que o Homo sapiens do Paleolítico Superior já tinha uma cultura oral razoavelmente desenvolvida, podemos imaginar que tipo de histórias eles deviam contar uns para os outros ao redor da fogueira. Provavelmente o mesmo tipo de histórias que eles retratavam nas paredes de suas cavernas. Histórias envolvendo a atividade profissional (para ser o mais anacrônico possível) mais importante da época. A caça.


Muitos especialistas (mitólogos e antropólogos, no caso) concordam que as estruturas mentais ligadas à narrativa humana estão profundamente relacionadas à atividade da caça. Então, caso você (como um bom humano urbano moderno) não saiba nada sobre como caçar um animal, valem primeiro algumas explicações.

Seja em uma caçada de espreita ou uma caçada de persistência, o primeiro, mais longo e mais difícil passo é encontrar o animal. Caso você nunca tenha pisado em uma floresta, saiba: elas são grandes. Pra caralho. É como procurar uma agulha no palheiro, e é impossível encontrar simplesmente andando aleatoriamente.

As técnicas de rastreio ajudam, mas encontrar rastros sutis no chão de uma mata (ou qualquer outro ecossistema) também não é nada trivial. É preciso saber onde procurá-los. Mas onde?

Nas fontes de água, onde os animais vão beber. Sendo assim, toda caçada primitiva começa com uma passagem pelo lugar de beber, onde os homens se abastecem, procuram por rastros e então seguem viagem, mudando drasticamente seu rumo.

Para entender como estas experiências de caçada ajudaram a estabelecer os padrões narrativos que usamos, vamos voltar aos exemplos que eu citei lá no início:

É no Pônei Saltitante que Frodo se encontra com Aragorn, descobre quem são os terríveis Espectros que o perseguem e onde ele decide prosseguir até Valfenda.


Na Cantina de Mos Eisley, Luke Skywalker e Obi-Wan Kenobi conhecem Han Solo, que tem a nave que vai levá-los para o resto da jornada.


Harry Potter precisa passar pelo Caldeirão Furado para adquirir os objetos que vai precisar em Hogwarts, e é também onde ele contempla pela primeira vez o mundo da magia onde está para ingressar.


Ford Prefect faz questão de arrastar Arthur Dent para o bar Horse and Groom antes de salvá-lo da destruição da Terra e colocá-lo na trilha de se tornar um Mochileiro das Galáxias.


A taverna, então, é um lugar para conseguir coisas, fazer aliados e, principalmente, definir o rumo do resto da aventura.

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Então, da próxima vez que um Mestre de RPG começar uma aventura na taverna, não reclame. Ele está seguindo uma tradição narrativa de milhares de anos.